4 Comentários
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Avatar de Vera de Vilhena

Um comentário tardio, peço desculpa, agora que consigo comentar na plataforma, sendo que ouvi este episódio há vários dias.

Ocorreu-me acrescentar, sobre este assunto, algo que costumo defender quando tema é arte em geral, ser bom ou mau, o tempo que os miúdos investem a ler, a ver séries e filmes ou na net. Pergunto sempre: Ok, ler, ler... mas ler O QUÊ? Divido tudo em Bom e Mau. E acredito que mais vale ver um bom filme do que ler um mau livro. E nessa óptica é preferível ler 10 bons livros por ano, que deixem a pegada da leitura, uma cintilação de ideias e emoções, do que despachar 40 livros "nhee" anualmente.

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Avatar de João Baptista

Eu confesso que tendo a inscrever-me no grupo dos “rezingões”, aqueles contra os quais o Marco aqui argumenta.

Sobre a questão, diria o seguinte.

Parece inequívoco que o número de jovens a ler seja maior do que no passado, quer de um ponto de vista absoluto, quer de um ponto de vista relativo, isto é, considerando apenas a percentagem de jovens a ler por referência ao universo total de jovens que existe em cada momento histórico. Como o Marco disse, a eliminação progressiva do analfabetismo tem nisso um papel fulcral, assim como a acessibilidade geral dos livros.

Não acho que haja algo de intrinsecamente mau em que os jovens leiam mais. O que me parece é que seria expectável que, proporcionalmente, lessem mais e melhor, dado que se trata de um conjunto de indivíduos muito mais qualificado e com facilidade de acesso a bons livros. Afinal, o preço de um livro de Faulkner é igual ao de um de Chagas Freitas, ou daqueles que vêm envolvidos em tule, e encontra-se nas livrarias e bibliotecas com a mesma facilidade. Se antes poucos liam desde logo porque poucos sabiam e podiam ler, hoje poucos lêem, mas muitos sabem e podem ler, o que sugere um declínio não quantitativo, mas qualitativo.

A minha impressão – e admito perfeitamente poder estar enviesado – é a de que no universo do publicado há uma proliferação crescente de obras de menor qualidade e que, por via da publicidade comercial, das redes sociais e mecanismos do género, acabam por se impor e ocupar todo o espaço de disponibilidade que os jovens têm para dedicar à leitura. Com a concorrência dos meios digitais, o espaço para a leitura, para a leitura mais exigente, parece ser cada vez menor. A capacidade de concentração diminui, a rapidez com que se espera a gratificação proporcionada por uma dada actividade é maior, etc. Daí que livros simplistas, de puro entretenimento, que pouco exigem do leitor para se deixar “devorar”, vão pululando, até porque também podem ser escritos por praticamente qualquer um, muitas vezes basta repetir esquemas formulaicos e sai mais um calhamaço. Cada vez o contexto dificulta mais aos jovens o ter “pachorra” e perceber que há algo de bom em ler a longa descrição do Ramalhete.

Por outro lado, tenho as maiores dúvidas de que o acesso à grande literatura se faça por via da má leitura. O que não quer dizer que não possa acontecer contingentemente. O receio é que, sem um esforço sério da escola e da comunidade, e sem a vontade dos próprios, os espíritos se vão embotando e habituando à má literatura, que pouco exige deles. Tal como alguém habituado a experienciar sempre só dois ou três sabores acaba por perder a capacidade de, quando exposto a algo mais rico, captar a multiplicidades e cambiantes de novos sabores, assim sucederá com a capacidade de ler coisas mais evoluídas e exigentes.

Fica aqui a minha catilinária!

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Avatar de Marco Neves

Caro João,

O meu argumento é que a leitura das boas obras não diminuiu, antes pelo contrário.

Também há muitos exemplos de pessoas que começam em literatura considerada menor e depois descobrem essa boa literatura; a literatura menor poderá não servir de passagem à boa literatura em muitos carros, mas não vejo que sirva de barreira. Há muitos exemplos de pessoas que passaram por muitos tipos de livros.

O hábito de pegar num livro é mesmo o passo essencial.

Que há muita coisa má por aí à venda, certamente que sim. No entanto, lembro que nenhuma geração teve, na sua maioria, pachorra para o Ramalhete. Os que lemos sempre fomos uma minoria. Mesmo entre os leitores, muitos sempre gostaram de literatura menos boa (digamos assim).

Não consigo perceber bem quando diz que há um declínio qualitativo. A quantidade de de pessoas que lêem obras de qualidade não diminuiu... O número de leitores de Eça é hoje maior que na época de Eça... :)

Perante um número enormíssimo que lê má literatura, a tendência é para considerar que a proporção é o importante. Não é. Dos seguintes dois cenários, prefiro sem qualquer dúvida o segundo:

1. 10% da população lê; desses 10%, 80% lê boa literatura.

2. 50% da população lê; desses 50%, 20% lê boa literatura.

A leitura de boa literatura chega a mais pessoas no segundo caso; no entanto, a sensação de quem vai a uma livraria será que poucos lêem a boa literatura.

Dito tudo isto, independentemente da opinião, queremos o mesmo: que mais pessoas leiam esses bons livros. Estar a atacar este movimento de aproximação ao livro só poderá ser contraproducente. (E olhe que há coisas muito boas nessa avalanche de livros que parecem todos maus à primeira vista...)

Um abraço,

Marco

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Avatar de João Baptista

Caro Marco, obrigado pelo comentário, é bom voltar a trocar impressões por aqui!

Em primeiro lugar, partilhamos realmente o mesmo propósito: que se leia mais e melhor. Da minha parte não pretendo atacar nada nem ninguém, apenas partilhar a minha visão sobre o assunto. Nisto da leitura, como em praticamente tudo o resto, impera um princípio de liberdade absoluta: lê quem quer, o que quer e quanto quer. Claro que podemos ter opiniões sobre isso e procurar que a realidade se altere para melhor, mas sempre balizada por este princípio.

Disto isto e apenas para clarificar o que quis dizer com declínio quantitativo e para comentar o seu argumento segundo o qual «a leitura das boas obras não diminuiu, antes pelo contrário», acrescentaria algumas coisas.

Não nego que esse valor tenha aumentado (ainda que não tenhamos aqui definido o ponto de comparação que temos em mente, mas admitamos que falamos da primeira metade do século XX), especialmente em termos absolutos. O que sustento é que não parece ter aumentado tanto como seria expectável, dado o incremento absolutamente gigantesco das competências que, passando a estar presentes nos jovens, lhes permitiriam ler melhor literatura.

Consideremos os dois cenários do seu exemplo. Olhando apenas para os valores, concordo que o cenário 2 é preferível, pois implica que 25 do universo total de 100 lê boa literatura e outros 25 lêem literatura “menor” (mas lêem), ao passo que no cenário 1, no mesmo universo total de 100, apenas 10 lêem qualquer coisa e, dentro destes, 8 lêem boa literatura.

Mas creio que esta comparação omite algo de relevante. Suponhamos que no cenário 1 estamos na primeira metade do século XX, onde no universo total de 100 o analfabetismo é de 75% (pelo que vi, será um valor plausível) e que no cenário 2 estamos na actualidade, em que o analfabetismo é somente de 3% e temos as gerações jovens mais qualificadas de sempre.

O meu argumento é que devo comparar a qualidade da leitura sem aí incluir aqueles que não dispõem sequer dos meios para poder ler, ou para poder escolher ler boa ou má literatura. Ou seja, dos 100 do cenário 1, para 75 a questão nem sequer se colocava, pelo que a circunstância de desses 100 apenas 10 lerem fica a dever-se, em grande medida, à impossibilidade e não a más escolhas ou a outros factores equivalentes. Já no cenário 2 a situação é radicalmente distinta, pois 97 desses 100 têm todas as capacidades que os habilitariam a ler boa literatura. Se a proporção dos que lêem boa literatura aumenta a um ritmo muito menor do que a aquisição das capacidades que os habilitariam a tal e, mais, que fariam esperar que isso acontecesse, então isso revela, creio, o tal declínio qualitativo.

Em suma, é verdade que hoje há muito mais gente a ler Eça do que no tempo de Eça. Mas isso nada tem de estranho, pois no tempo de Eça poucos eram os que conseguiam ler tout court. Hoje praticamente todos conseguem ler Eça, seja pela escolaridade, seja pela acessibilidade dos livros. Que a grandeza do aumento dos que o fazem não tenha uma magnitude maior é que espanta (ou que desilude, talvez seja o termo mais correcto).

Muito obrigado pelo diálogo!

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