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33. Átomos e vírus em Eça de Queiroz (e um café em Lisboa)
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33. Átomos e vírus em Eça de Queiroz (e um café em Lisboa)

Revelo o café lisboeta onde ontem andei com um microfone por cima da cabeça. — Vamos à procura de átomos e vírus n'Os Maias (e ainda de galáxias por esse Universo fora). — Imagino Eça de Queiroz dentro dum carro (porque sim).

*

Aproveito para deixar aqui um extracto d'Os Maias um pouco maior do que aquele que leio durante o episódio (a ortografia é a da primeira edição):

«O Livro do Ega! Fôra em Coimbra, nos dois ultimos annos, que elle começára a fallar do seu livro, contando o plano, soltando titulos de capitulos, citando pelos cafés phrases de grande sonoridade. E entre os amigos do Ega discutia-se já o livro do Ega como devendo iniciar, pela fórma e pela idéa, uma evolução litteraria. Em Lisboa (onde elle vinha passar as ferias e dava ceias no Silva) o livro fôra annunciado como um acontecimento. Bachareis, contemporaneos ou seus condiscipulos, tinham levado de Coimbra, espalhado pelas provincias e pelas ilhas a fama do livro do Ega. Já de qualquer modo essa noticia chegára ao Brazil... E sentindo esta anciosa espectativa em torno do seu livro — ­o Ega decidira-se emfim a escrevel-o.

Devia ser uma epopêa em prosa, como elle dizia, dando, sob episodios symbolicos, a historia das grandes phases do Universo e da Humanidade. Intitulava-se Memorias d’um Atomo, e tinha a fórma d’uma autobiographia. Este atomo (o atomo do Ega, como se lhe chamava a serio em Coimbra) apparecia no primeiro capitulo, rolando ainda no vago das Nebuloses primitivas: depois vinha embrulhado, faisca candente, na massa de fogo que devia ser mais tarde a Terra: emfim, fazia parte da primeira folha de planta que surgiu da crosta ainda molle do globo. Desde então, viajando nas incessantes transformações da substancia, o atomo do Ega entrava na rude structura do Orango, pae da humanidade — ­e mais tarde vivia nos labios de Platão. Negrejava no burel dos santos, refulgia na espada dos heroes, palpitava no coração dos poetas. Gota de agua nos lagos de Galiléa, ouvira o fallar de Jesus, aos fins da tarde, quando os apostolos recolhiam as redes; nó de madeira na tribuna da Convenção, sentira o frio da mão de Robespierre. Errara nos vastos anneis de Saturno; e as madrugadas da terra tinham-n’o orvalhado, petala resplandecente de um dormente e languido lyrio. Fôra omnipresente, era omnisciente. Achando-se finalmente no bico da penna do Ega, e cançado d’esta jornada atravez do Ser, repousava — ­escrevendo as suas Memorias... Tal era este formidavel trabalho — ­de que os admiradores do Ega, em Coimbra, diziam, pensativos e como esmagados de respeito:

— ­É uma Biblia!»

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Histórias dentro dos livros, à volta dos livros, sobre os livros — e ainda sobre o que fazemos com eles e por onde andamos com eles. De vez em quando, falamos também de línguas (e outras manias).
Marco Neves é autor de vários livros publicados em Portugal e na Galiza, da página Certas Palavras (www.certaspalavras.pt) e de uma coluna no Sapo 24. É docente na NOVA FCSH. O seu livro mais recente é o Atlas Histórico da Escrita.